segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Você não está só



Percebo que você está atônito. Você vê o opressor voltar sobre os ombros dos oprimidos, vestindo a capa da barbárie, cheio de bravatas, dedo em riste, cuspindo arrogâncias. Ao contrário do passado, ele nada precisa impor. Agora ele tem o voto, ele tem a cumplicidade ou a ingenuidade de quem aplaude seu discurso de selvageria e atraso.

Percebo que você está frustrado. De tanto esmurrar ponta de faca, você perde o sono, o humor, as estribeiras. Você perde a fé na humanidade.

Percebo que você está abatido. Você teme ver tudo acontecer novamente. Você teme por seus filhos, por seus netos, pelas gerações que talvez não tenham mais direito à voz.

Você procurou o diálogo e ouviu frases feitas. Propôs questões complexas e ouviu respostas simplistas. Você revelou que o mundo lá fora está perplexo, você compartilhou as ideias daqueles que aprofundam o pensar, tentou investigar além da superfície, dos adjetivos, das provocações, dos memes e das notícias falsas.

Você tentou dialogar, tentou evidenciar o óbvio porque os mortos da história não podem se manifestar.

Percebo que você se sente só. Mas você não está. Você tem a companhia daqueles que ousam acreditar. Talvez a mochila da intolerância se revele pesada demais, mesmo para seus seguidores.

Que nossas redes de afinidade, de solidariedade, de paz e gentileza possam arrefecer a marcha embrutecida de um capitão simplório.

Porque ainda nos resta essa empatia, resta-nos esse apoiar uns aos outros nos novos tempos que já nascem envelhecidos. Resta-nos essa resistência conjunta aos coturnos de cinco décadas que chutam a porta de nossa história.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Quem é que te chama?




Esculpido em Carrara
a cara do pai
Pra onde o pai foi
também você vai
Ao olhar para frente
só vê para trás
Rezou pra Jesus
mas salvou Barrabás

Você é o jovem
você é o novo
você é hightech
Duas pernas te movem
não pede socorro
prescinde de prece
É apenas estorvo
aquilo que ouve
enquanto cresce

Tem verdade e certeza
jura que a vida
não há de acabar
Por vaidade e riqueza
vai nessa corrida
pra nunca chegar

A vida, menino,
que levas contigo,
é de aventurar
Tem bem mais sentido
lá fora da tribo
além do vulgar

Evite o perigo
de olhar pro futuro
como algum lugar
Lugar não existe
além deste tempo
além deste peito
além deste ar

No velho Japão
na Índia
ou anciã China
Em lótus no chão
ou lá na colina
o de baixo reflete
o mundo de cima

 Não faz mais sentido
euforia ou lamento
 Lá fora, menino
está aqui dentro
 Às portas do peito
o contentamento

Só o que existe
pra dentro e pra fora
no exercício
de respirar
É o suave sorriso
pra sempre e agora
no livre arbítrio
de meditar
 
 Neste momento
no templo
ou na grama
Pensamento
em Jesus
ou Sidarta Gautama
Se a voz é de luz
de amor
e de prana
só importa o alento
não importa quem chama



 



sexta-feira, 4 de maio de 2018

Você já alimentou seu ódio hoje?



Eu não sei você, mas eu nunca simpatizei com o kkk do Facebook e afins. Prefiro um cúmplice hehe, um mais enfático haha ou mesmo o discreto e fora de uso rss. Sem falar das mais variadas gargalhadas, piscadelas e sorrisos em forma de emoticons.

Eu não sei você, mas o kkk me lembra deboche, não o riso.

Além disso, é impossível não relacionar o kkk à KKK. Não é sugestivo que nossas risadas virtuais remetam à Ku-Klux-Klan?

Mas o kkk se tornou secundário - quem diria? Restou apenas pequena implicância. Porque agora expressões bem mais significativas pedem atenção permanente.

Lixo é uma delas.

Fulano clica no link e se abre um texto de oito páginas. O autor cita fontes e referências, usa argumentos lógicos, incentiva o debate cordial. Fulano rola suas oito páginas em dois segundos. Na caixa de comentários, Fulano deixa sua impressão - Parei na segunda linha. Lixo!!!

Já Sicrano, mais propositivo, quando compartilha uma postagem, costuma carimbá-la com duas expressões inabaláveis e definitivas: Fato! e Com certeza!

Geralmente o Fato! não é fato, e a certeza vem do Fato! que não é fato.

E vá você falar de justiça, igualdade e outras necessidades humanas! Abaixe-se porque vem uma saraivada de adjetivos. Esquerdopata, feminazi, aliado de bandido e defensor de vagabundo se apresentam como os mais suaves.

Eu não sei você, mas eu venho pensando - talvez seja necessário um desarmamento unilateral. Embora oferecer flores não pareça promissor, não dá para ser cúmplice da violência

A pergunta é: como agir nessa atmosfera de agressão verbal, xingamentos e certezas vomitadas?

Deveríamos:

(  ) Insistir no diálogo?
(  ) Pagar na mesma moeda?
(  ) Ironizar?
(  ) Ignorar?
(  ) Denunciar algumas postagens, quem sabe?

Eu não sei você, mas eu já tentei as três primeiras alternativas e estou na penúltima. Penso que continuo errando.

Procurei a resposta em grupos relacionados à Comunicação Não Violenta (CNV) no Facebook. Por certo ali estaria a pedra de toque que transformaria relações e feeds.

O praticante de CNV sabe que é preciso, antes de tudo, escutar. Ele aprendeu que por detrás de determinada palavra ou atitude existem necessidades não expressas.

Disse Marshall Rosenberg:

"As pessoas que parecem monstros são apenas seres humanos cuja linguagem e comportamento às vezes nos impedem de perceber sua natureza humana."

Mas, mesmo nos grupos de CNV, não se encontra consenso quanto à forma de se relacionar com aquele que demonstra racismo, homofobia, xenofobia, sexismo, preconceito religioso ou de classe social. O negócio é tão complicado que já saiu até treta por lá.

Eu não sei você, mas eu ainda quero acreditar nas centelhas que, aqui e ali, tentam alimentar uma onda de bom senso e cordialidade. Devo porém confessar que minhas esperanças se esvaem já na segunda página do Facebook.

Se você tem a solução, diga aí. Como dialogar com o sujeito que esperneia pelo direito de chamar o outro de viado, macaco ou vagabundo e que adora acusar de coitadismo as eventuais vítimas?

Resumindo a questão - como tolerar o intolerante?

Eu não sei você, mas eu não sei.


Mais do mesmo:

terça-feira, 1 de maio de 2018

Um chá surpresa pra vocês


Acordei na mesma hora
de acordar toda manhã
Beijei Nossa Senhora
pedi benção de Iansã
Pendurei no meu busanga,
Brasilândia - Jaçanã

Um bom-dia
um sorriso
uma pilha de papel
Boleto tudo atrasado
bilhete de entrar no céu
Pura pobre alma penada
nesta vida de aluguel

Ralo a manhã inteira
e a mesa ainda lotada
Divido comigo mesmo
arroz, ovo e uma salada
Água limpa da torneira
se possível bem gelada
Sempre aquela sobremesa
queijo com goiabada
A conta nem vem pra mesa
fica lá dependurada

Não se acaba esta semana,
vai dar dez e não dá seis
Tá cheio de bambambã,
tudo falando inglês
Não espero até amanhã
pra acabar tudo de vez
No chazinho de hortelã
tem surpresa pra vocês 

Então penso na merreca
que recebo todo mês
É só isso que me breca
de ferrar com dois ou três
Se aqui é uma merda
imagina no xadrez

 O corpo que vai pra casa
retorna vazio amanhã
Leve a alma, seu Satã,
devolva no fim do mês
Resta pra esta casca
fazer o que sempre fez
No Brasilândia-Jaçanã
sacolejar mais uma vez


sexta-feira, 13 de abril de 2018

Absinto ou sacolé?



Provar absinto
Não o café
Homem parir
Não a mulher
Dar a carícia
Não pontapé
Maria com João
Não com José
Irmos de Boeing
Não mais a pé
A culpa do rei
Não da ralé
Telha de vidro
Não de sapé
Andar para frente
Não mais de ré
Vivermos de luz
Não de filé
Fungar no cangote
Não no rapé
Medo da chuva
Não de Noé
Sessão proibida
Não matiné
Almoço completo
Não canapé
Piano de cauda
Não oboé
Suíte especial
Não mais chalé
Passos de tango
Não de axé
Dar beijo na boca
Não tiro no pé
Pintar as estrelas
Não rodapé
Sorvete italiano
Não sacolé
Dança moderna
Não mais balé
Cavalo selvagem
Não pangaré
Cumprir o contrato
Não dar migué
Ser galo de rinha
Não garnizé
Ser gente ligada
Não Zé Mané